Há muitos conceitos diferentes para a palavra musicalidade, em geral é definida como “o talento ou sensibilidade para criar ou executar música”, entretanto, esse conceito não é suficiente para nós, não explica o que viria a ser esse tal talento e não nos ajuda em muita coisa. Portanto, com base no conhecimento que fui adquirindo no decorrer dos anos com meu envolvimento cada vez maior com a música, desenvolvi o ponto vista de que a musicalidade é a “interiorização” dos elementos musicais previamente existentes, um conceito fundamental para entender como os músicos criam e inovam dentro de suas próprias formas expressões. Vamos mergulhar nesse conceito e refletir sobre como o desenvolvimento da musicalidade pode nos ajudar a nos tornarmos músicos mais expressivos. Para começo de conversa, a musicalidade não é uma característica inata. Não nascemos com essa capacidade. Ela é 100% adquirida, 100% apreendida.
Toda música que tocamos ou criamos está, de alguma forma, ligada a alguma referências externa — sejam elas tradicionais, culturais, estilísticas ou até mesmo experimentais. Essas referências são fundamentais para que possamos entender a estrutura da música e desenvolver uma capacidade de reconhecimento e execução. É a mesma coisa que oferecer uma guitarra para alguém que não é musico, ele não vai conseguir tirar nenhuma sonoridade coerente. Se a pessoa já toca algum outro instrumento, mesmo que não seja guitarrista, provavelmente vai saber encontrar, pelo som, notas que farão algum sentido, ou seja, a musicalidade é uma característica totalmente vinculada a cultura, ao conhecimento pré-existente, e, principalmente, à aprendizagem e interiorização dos elementos musicais existentes no contexto em que vivemos nossas vidas.
Se um músico nunca tivesse ouvido nenhuma música antes, ele não teria nenhuma base para compreender como as notas se conectam, qual o significado de um acorde maior ou menor, ou como um ritmo se organiza. O próprio conceito de melodia, harmonia e ritmo é construído através da observação, análise e prática de músicas já existentes. Sem essas referências, seria impossível compreender as regras não-escritas que governam a música. Além disso, a absorção de influências e referências musicais molda totalmente o processo de criação. Essa interiorização é o primeiro pilar da musicalidade, mas não é o único, há também a expressão musical, que também envolve o desenvolvimento da musicalidade.
Desde o momento em que nascemos, começamos a ouvir sons ao nosso redor. A música, mesmo que em uma forma primitiva, está sempre presente nas nossas vidas. Começamos a aprender a música de forma implícita e inconsciente — ouvindo as músicas que nos chegam através de familiares, amigos e em momento posterior, de diferentes meios. O que está em jogo, então, não é apenas a capacidade técnica de tocar um instrumento, mas a habilidade de perceber e internalizar padrões sonoros que, com o tempo, nos permitirão reproduzir, criar e expressar nossa própria música, de uma forma única, a isso iremos chamar de musicalidade.
Sem essas referências externas, a noção de “melodia” ou “harmonia” não faria sentido. Seria como tentar aprender uma linguagem sem nunca ter ouvido ninguém falar. Não haveria a construção de um vocabulário sonoro, e, portanto, a compreensão estética da música seria praticamente impossível.
A criação musical é um processo que surge, em grande parte, da mistura e transformação de elementos que já conhecemos. Ao ouvir diferentes estilos, melodias e harmonias, um músico começa a perceber e interiorizar esses padrões melódicos e harmônicos, sendo capaz de manipulá-los e adaptá-los à sua própria forma de expressão. Sem essas referências externas, não haveria como o músico aprender a criar música que fosse compreensível ou reconhecível por outros. A criação seria não apenas desorganizada, mas desprovida de significado.
Por exemplo, se uma criança nascesse sem ouvir nenhuma música e fosse treinada a tocar um instrumento, ela não teria noções de como as notas e acordes se relacionam. O conceito de melodia ou ritmo não existiria em sua mente, ou seja, não haveria a interiorização musical. Ela poderia, até, produzir sons no instrumento, mas esses sons não se conectariam de forma harmônica ou melódica como esperamos de uma peça musical. A música que essa criança criasse não teria estrutura, nem emoção reconhecível, pois a base para isso — a música absorvida ao longo da vida — estaria ausente. Dessa forma, devemos levar em consideração que a musicalidade vai se tornando cada vez mais estruturada em nosso interior, na medida em que nossa capacidade de perceber a música, os sons, timbres, técnicas ali presentes vai aumentando.
A música pode ser vista como uma linguagem universal. Assim como aprendemos a falar e escrever com base no que ouvimos e lemos, aprendemos a tocar e criar música com base no que ouvimos e experimentamos musicalmente. Ao interiorizar as melodias, harmonias, ritmos e timbres de outras músicas, adquirimos um vocabulário sonoro que nos permite comunicar ideias, sentimentos e emoções por meio de nossos instrumentos. A capacidade de percepção auditiva também ira se desenvolver na mesma medida.
O processo de interiorização musical é gradual, envolvendo a assimilação e compreensão de diversos aspectos musicais, como intervalos, escalas, técnicas instrumentais e até as convenções estéticas dos diferentes estilos musicais. Esse processo ocorre aos poucos e leva tempo, porque a música não é apenas uma sequência de sons ou movimentos mecânicos, mas uma linguagem complexa que precisa ser aprendida, praticada e internalizada. Vamos detalhar como essa interiorização acontece, especificamente em relação aos intervalos, escalas e técnicas instrumentais, e como elas se estruturam ao longo do tempo.
O processo de interiorização começa de forma inconsciente e se torna mais consciente à medida que o músico pratica e ganha experiência. Inicialmente, o músico está exposto a muitos sons e padrões musicais (por meio da escuta, aprendizado formal ou informal) e começa a identificar padrões simples como melodias ou acordes. Com o tempo, essas exposições vão se organizando em estruturas mais complexas, formando um mapa musical interno.
Intervalos são a distância entre duas notas musicais, e a capacidade de reconhecê-los e utilizá-los é fundamental para o desenvolvimento musical. Quando um músico começa a estudar música, ele não entende imediatamente o que é, por exemplo, um intervalo de terça maior ou de quinta justa. No entanto, à medida que ele ouve e toca, começa a perceber e a associar esses sons a padrões específicos.
Primeira exposição: Inicialmente, o músico pode identificar um intervalo sem saber seu nome. Ele sente que algumas notas soam mais “distantes” ou “próximas”, mas a compreensão formal dos intervalos (terças, quintas, etc.) ainda não está presente. Ele pode tocar uma melodia simples e intuitivamente reconhecer como a distância entre as notas cria uma sensação de tensão ou resolução, sem necessariamente identificar que é uma terça ou uma quinta.
Processo de interiorização: À medida que o estudo avança, o músico começa a nomear e internalizar esses intervalos. Ele aprende que a terça maior é a distância entre as notas C e E, ou que a quinta justa é a distância entre C e G. Com a prática, ele interioriza essas noções e passa a reconhecê-las instantaneamente, mesmo sem pensar conscientemente. Isso facilita a criação de melodias e a compreensão das progressões harmônicas.
Resultado final: O músico agora reconhece intervalos de forma intuitiva, e isso é internalizado em seu vocabulario sonoro. Ele pode usar esses intervalos em solos, melodias ou harmonias de forma natural, sem precisar contar ou medir cada intervalo.
As escalas são conjuntos de notas organizadas em uma sequência específica de intervalos, e sua interiorização é crucial para a habilidade de improvisação, composição e execução de solos. O processo de interiorização das escalas envolve a repetição e a aplicação prática dos padrões de notas dentro de um contexto musical.
Primeira exposição: Inicialmente, o músico aprende as escalas de forma teórica. Ele pode começar com a escala maior e suas variações, como a menor natural ou a pentatônica. No início, ele talvez precise visualizar a escala no braço do violão, no teclado ou usar partituras para entender a sequência de notas.
Processo de interiorização: Ao praticar essas escalas, o músico começa a memorizá-las e a incorporá-las ao seu vocabulário sonoro. Isso significa que ele começa a reconhecer os padrões de notas sem precisar de uma partitura ou de um mapa visual. A escalas tornam-se, então, uma ferramenta automática para criar frases melódicas, solos ou improvisações. Com o tempo, o músico interioriza modos e variações escalares, como os modos gregos, escalas exóticas, entre outros, expandindo ainda mais sua paleta criativa.
Resultado final: Quando o músico domina as escalas, ele já não precisa pensar em cada nota ao tocar. Ele usa as escalas de forma fluida e criativa, fazendo conexões entre as notas e as frases musicais, com a possibilidade de variar a sonoridade de acordo com o estilo ou a emoção que deseja expressar.
Cada técnica instrumental também segue um processo de interiorização, e ela é essencial para executar qualquer peça ou improvisação de forma expressiva. As técnicas, como bends na guitarra, articulações na flauta, ou o pizzicato no violino, precisam ser praticadas repetidamente até que se tornem naturais.
Primeira exposição: Inicialmente, o músico tem que aprender a técnica de maneira formal. Por exemplo, um guitarrista pode aprender a fazer um bend, mas a execução não será precisa ou fluída de imediato. Ele precisa de muita prática para coordenar os músculos da mão e os dedos, além de controlar a pressão correta nas cordas para alcançar o som desejado.
Processo de interiorização: Com o tempo, o guitarrista começa a executar o bend sem pensar conscientemente sobre como realizá-lo. Ele internaliza a técnica, e, em vez de se preocupar com a mecânica, passa a usá-la de forma expressiva para realçar emoções na música. No caso de outros músicos, o processo seria o mesmo, seja ao dominar uma articulação ou outra técnica específica.
Resultado final: A técnica é completamente interiorizada, permitindo que o músico se concentre mais na expressão e no sentimento durante a execução, sem ser limitado pela técnica em si. A habilidade de improvisar ou executar solos complexos surge da combinação de todas essas técnicas que o músico dominou ao longo do tempo.
A musicalidade é, sem dúvida, o aspecto mais fundamental do músico, pois é ela que transcende as simples técnicas e conhecimentos teóricos, permitindo que o músico se conecte de maneira profunda e expressiva com a música. A técnica, as escalas, os intervalos e as ferramentas de um instrumento são essenciais, mas são a musicalidade que transforma esses elementos em algo único e pessoal. Ela não é algo que se aprende de forma mecânica, mas sim algo que se desenvolve ao longo do tempo, através da absorção, da interiorização e da aplicação criativa das influências externas que o músico recebe.
Sem a musicalidade, um músico seria capaz de tocar notas, mas não de transmitir emoções, de contar histórias ou de expressar sentimentos. A musicalidade é o que dá vida à música e a torna uma linguagem universal, capaz de ultrapassar barreiras culturais e emocionais. Ela é, portanto, o que torna o músico verdadeiramente musical — a habilidade de transformar padrões sonoros em comunicação artística, seja em uma improvisação, em uma composição ou em uma interpretação.
É a musicalidade que permite que o músico se torne não apenas um executor, mas um criador e um intérprete. É ela que faz com que o músico seja único, pois é através dela que ele interpreta as influências e as referências que absorveu, imprimindo sua própria identidade sonora. Portanto, a musicalidade deve ser vista não apenas como uma habilidade, mas como o alicerce de toda a criação musical, sendo o fator chave para que qualquer músico possa alcançar seu potencial artístico pleno.